A doença falciforme (anemia crônica hemolítica congênita) é a mais comum das doenças autossômicas recessivas no mundo e tem alta prevalência na população brasileira. A Fundação Hemominas é o centro de referência para o tratamento ambulatorial de pessoas com diagnóstico de Hemoglobinopatias no estado de Minas Gerais.

Pacientes que apresentarem intercorrências agudas, complicações relacionadas à doença falciforme, deverão procurar serviços médicos hospitalares, conforme as referências pactuadas pelo município de residência. Ao procurar serviços médicos hospitalares, devem apresentar, além dos documentos de identificação, a  carteira com o diagnóstico fornecida pelas Unidades da Fundação Hemominas onde os pacientes fazem acompanhamento, contendo informações clínicas e laboratoriais de sua patologia, incluindo valores de hemoglobina, leucócitos basais, medicamentos em uso e se possuem aloimunização (COOMBS indireto positivo e anticorpos irregulares identificáveis pelo painel de hemácias).

PROCURAR ATENDIMENTO MÉDICO DE URGÊNCIA EM CASO DE SINAIS DE ALERTA - Febre, prostração, desidratação, acentuação da palidez e ou da icterícia, aumento súbito do tamanho do baço, distensão abdominal, alterações neurológicos e convulsão, vômitos e inapetência. Dor moderada a intensa sem alívio com analgésicos, sintomas respiratórios (tosse, dor torácica, taquidispneia) e dificuldade respiratória. Priapismo em adolescentes e homens, por mais de duas horas.

As principais complicações relacionadas à doença falciforme são as seguintes:

CRISE TORÁCICA AGUDA - É a segunda causa mais comum de internação e óbito. Caracteriza-se por febre, tosse, taquidispneia, dor torácica, leucocitose (acima do nível basal) e por novo infiltrado à radiografia de tórax. Hipoxemia é usualmente presente e pode ser grave. Devem ser utilizados antibióticos de amplo espectro (cefalosporinas de terceira geração e macrolídeos), monitorização intensiva e exsanguíneo-transfusões parciais (reduzir a porcentagem de HbS  a menos de 30%), quando a hemoglobina estiver  acima de 9 g/dL ou o hematócrito ³25%, pelo risco de se aumentar a viscosidade sanguínea e vaso-oclusão, caso se utilize a transfusão simples. Em geral, nos pacientes adultos faz-se uma sangria manual de 200 a 300 ml  (até 500ml, se hemoglobina acima de 10 g/dL, a critério médico) em um acesso venoso, em 10 minutos, e no outro acesso, infusão de soro fisiológico, 250ml e, a seguir, transfusão de 300 ml ou uma  bolsa de concentrado de hemácias. Nas crianças, a sangria não deve ultrapassar 10% da volemia (5 a 8 ml/Kg),  e na transfusão de concentrado de hemácias, o volume é de 10ml/kg (máximo de uma bolsa de concentrado de hemácias desleucocitadas, para peso acima de 30 Kg), fenotipadas (sempre que possível) para grupos sanguíneos CDE e Kell, Duffy e Kidd e testadas para hemoglobina S, importante conversar com equipe de Hemoterapia da Fundação Hemominas.

CRISE VASO-OCLUSIVA (CRISE ÁLGICA) - Caracteriza-se por dores ósseas e articulares nos membros e/ou coluna. São inicialmente tratadas em domicílio com analgésicos comuns. Se não houver melhora, o paciente deverá ser internado. Iniciar analgesia fixa, hidratação venosa com soro glicofisiológico 4:1 (SGI 5%, 400 ml + SF 0,9%, 100 ml,  a critério médico).

CUIDADO NA INFUSÃO DE LÍQUIDOS – RISCO DE SOBRECARGA CARDÍACA - A infusão deve ser monitorizada, pois as pacientes, em geral, já apresentam restrição cardíaca.  Não utilizar dolantina, pois esta causa dependência e depressão miocárdica e em caso de dores moderadas a graves, pode-se usar morfina, com monitorização clínica em ambiente hospitalar.       

TRANSFUSÕES DE SANGUE - Estão indicadas no caso de piora da anemia e de sintomas, isto é, queda do valor do hematócrito de mais de 20% ou queda de hemoglobina 20 a 30% em relação ao valor basal e associada com sintomas clínicos. PREFERIR A UTILIZAÇÃO DE CONCENTRADOS DE HEMÁCIAS DESLEUCOCITADAS FENOTIPADAS SEMPRE QUE POSSÍVEL, TESTADAS PARA HEMOGLOBINA S; porém, em caso de risco de vida, nem sempre é possível  esperar que sejam fenotipadas. Em caso de cirurgias sob anestesia geral, pacientes com anemia falciforme (SS) deverão fazer preparo transfusional, se Hb < 8-9 g/dL.

Em pacientes estáveis com hemoglobinopatia SC e concentração de Hb > 9 g/dL, transfusões não são necessárias, em geral para cirurgias de pequeno e médio porte, mas deve-se fazer a reserva da transfusão, para caso de intercorrências.  Manter hidratação adequada, ambiente aquecido e evitar hipotermia e acidose. Evitar transfundir muito, pois há risco de sobrecarga cardíaca, vaso-oclusão, aloimunizações, infecções, etc. O hemoterapeuta da agência transfusional onde o paciente se encontra internado deverá entrar em contato com Banco de Sangue da Fundação Hemominas para verificar o melhor fenótipo da transfusão de hemácias para o paciente, e para discussão com o  plantão Hemominas, se necessário.

AS INDICAÇÕES TRANSFUSIONAIS PARA PACIENTES COM DOENÇA FALCIFORME SÃO:

  • Queda de 2g/dl ou mais na Hb basal associado a sintomas clínicos (cansaço e dispneia com Hb abaixo dos níveis basais).
  • Crise aplásica (anemia grave, reticulopenia).
  • Sequestro esplênico agudo.
  • Síndrome torácica aguda.
  • Insuficiência cardíaca congestiva.
  • AVC agudo ou em profilaxia de AVC.
  • Disfunções orgânicas: insuficiência renal aguda e crônica (hemodiálise), complicações hepáticas.
  • Gravidez e pós-parto: avaliação individualizada, conforme quadro clínico e complicações e comorbidades.

INDICAÇÕES DE EXSANGUÍNEOTRANSFUSÃO PARCIAL - Utilizada em pacientes com doença falciforme que necessitam baixar níveis de hemoglobina S e naqueles que mantêm hematócrito acima de 25%, para diminuir a viscosidade do sangue e diminuir a vaso-oclusão. Nunca transfundir com transfusões simples, se hemoglobina maior ou igual a 10 g/dL, pois aumenta a viscosidade e vaso-oclusão. As principais indicações são: AVC isquêmico, Síndrome Torácica Aguda, colestase intra-hepática, procedimentos com contraste. Preparo cirúrgico: avaliar tipo de cirurgia, tempo anestésico, com duração superior a 2h, em grandes cirurgias (Exsanguineotransfusão Parcial); e em cirurgias de médio a moderado porte, manter hemoglobina em torno de 9 a 10 g/dl (interessante sempre discutir caso com hematologista da Fundação Hemominas de plantão para orientações).

INFECÇÕES - Sempre suspeitar, no caso de piora clínica, febre. Infecções urinárias são muito comuns; tratar bacteriúria assintomática. Em caso de suspeita, tratar, empiricamente, com cefalosporinas e solicitar urocultura para averiguação. Em caso de suspeita de infecções respiratórias, o paciente pode ser tratado com penicilinas (associada com clavulanato), cefalosporinas e macrolídeos – a escolha dependerá dos sintomas e gravidade clínica.  É importante coletar material para culturas e iniciar antibióticos com urgência, a fim de evitar complicações graves. Utilizar antibióticos profiláticos em caso de cirurgias odontológicas e tratar precocemente infecções.        

AVC ISQUÊMICO - Ocorre em crianças com diagnóstico de anemia falciforme e jovens com formas mais graves da doença, que cursam com anemia mais intensas, reticulocitose e leucocitose basais. Suspeitar em caso de cefaleia intensa, sinais e sintomas neurológicos. Internar em caráter emergencial, iniciar transfusões, e se hemoglobina acima de 8,5g/dL a 9g/dL ou hematócrito acima de 25%, deverão ser feitas exsanguineo-transfusões parciais, com objetivo de abaixar a hemoglobina S abaixo de 30% e diminuir a viscosidade sanguínea. Solicitar avaliação neurológica e Tc de crânio sem contraste ou ressonância de crânio e ou angioressonância de crânio. Mas ao apresentar sinais ou sintomas neurológicos, não esperar o resultado da TC ou RNM crânio, dado à gravidade da complicação.

COMPLICAÇÕES HEPÁTICAS - Pacientes com doença falciforme podem apresentar dor abdominal, febre, prostração, icterícia acentuada com predomínio de bilirrubina direta. Devem interna-se e solicitar propedêutica: hemograma, plaquetas, coagulograma, função hepática (transaminases-TGO,TGP, FA, GGT, bilirrubinas totais e frações), função renal, amilase, lipase, ultrassom de abdômen total. As principais causas são: litíase biliar sintomática ou colecistite, crise de falcização hepática e colestase intra-hepática.

Crise de falcização hepática: hepatomegalia dolorosa, aumento de transaminases (TGO e TGP <300 UI/L) e de bilirrubinas (Bilirrubina total <15mg/dl), dor abdominal. O tratamento é hidratação (não hiper-hidratar) e transfusão de hemácias desleucocitadas, fenotipadas (se for possível esperar); melhora em  geral, uma semana após tratamento.

Colecistite aguda: sintomas náuseas, vômitos, dor abodominal hipocôndrio direto, tratar com antibioticoterapia de amplo espectro e programar posteriormente, colecistectomia eletiva.

Colestase intra-hepática: suspeitar em caso de dor abdominal, hepatomegalia volumosa, icterícia acentuada com predomínio de bilirrubina direta, náuseas, vômitos e febre.  Cursa com prognóstico mais grave, com risco de evolução para disfunções orgânicas, com necessidade de reconhecimento precoce e tratamento com antibiótico de amplo espectro e exsanguineo-transfusões parciais.       

ORIENTAÇÕES GERAIS

  • Usar as medicações conforme prescrição médica
  • Uso contínuo de ácido fólico
  • Usar antibiótico profilático oral (penicilina ou eritromicina, se alergia) até os 5 anos de idade, e nos esplenectomizados, enquanto houver indicação médica
  • Hidratação oral frequente                        
  • Evitar extremos de temperatura
  • Manter cartão de vacinas atualizado
  • Prevenir picadas de insetos nas pernas e usar sapatos confortáveis
  • Controle clínico periódico nas UBS e programas de assistência clínica
  • Acompanhamento periódico hematológico e da equipe multidisciplinar na Fundação Hemominas
  • Na presença de crise de dor, tomar bastante líquido e analgésico, orientado pelo seu médico.
  • Tratamento odontológico: em caso de procedimentos invasivos, como extrações dentárias, utilizar antibiótico profilático e tratar infecções dentárias.

Referências bibliográficas:
Fluxo assistencial da linha de cuidado da doença falciforme

 

ATENÇÃO TALASSEMIAS

A talassemia acontece quando há um defeito genético na produção globinas (α e β), constituintes da hemoglobina, que cursa com anemia de grau variável, mas na β-talassemia major, anemia é grave, dependente de transfusão e necessário uso de quelantes de ferro para redução das complicações de sobrecarga de ferro no organismo. Paciente com talassemia beta maior ou intermediária pode ter intercorrências específicas da patologia de base.

O conhecimento dessas emergências pelo médico do pronto‑socorro e por especialistas relacionados (cardiologista, neurologistas e outros) permite o melhor manejo da pessoa com talassemia, permitindo a diminuição de complicações. Deve-se fazer revisão minuciosa dos sistemas, solicitar hemograma, plaquetas, coagulograma, função renal, hepática, bilirrubinas total, frações, LDH, ionograma e outros conforme quadro clínico, como ultrassom abominal total, se dor abdominal, RX tórax e outros.

Paciente com diagnóstico de talassemia major ou intermedia, ao procurar serviço de urgência, deve estar com sua carteira de identificação do atendimento na Hemominas que tenha informações sobre sua hemoglobina pré-transfusional, sobre transfusões regulares e a data da sua última transfusão.

Anemia: pacientes podem apresentar queda da hemoglobina em decorrência de reações transfusionais tardias, complicações infecciosas (infecção por eritrovírus B!9 – hipoplasia transitória série eritrocítica), deficiências de vitaminas (folato, vitamina B12), hemorragias.

Em situações de queda de hemoglobina em relação ao valor basal ou anemia sintomática, solicitar hemotransfusão, hemácias  desleucocitadas, fenotipadas (Rh, Kell, e se paciente aloimunizado, compatibilizar o seu fenótipo). A agência transfusional do hospital deverá entrar em contato com a prova cruzada da Hemominas para discussão do caso e providenciar a transfusão de forma mais rápida possível.

Se há suspeita de infecção, risco de sepse, é necessário o início imediato de antibiótico, porque a infecção é a segunda causa de óbito na talassemia maior. Os agentes etiológicos mais comuns são Klebsiella e Yersinia enterocolitica, mas também bactérias gram negativas e bactérias gram positivas encapsuladas em pacientes esplenectomizados. O tratamento deve ser o habitual para casos de sepse, considerando‑se a flora bacteriana local. Quando houver necessidade de expansão volêmica, cuidado com a função cardíaca nos pacientes com sobrecarga de ferro no coração. Pacientes apresentam maior risco de complicações tromboembólicas, e em situações de risco, como internações, cirurgias, devem utilizar heparina profilática.

Aula: Atendimento de urgências em Doença Falciforme

Referências:
Orientações para diagnóstico e tratamento das Talassemias Beta

Gestor responsável: Diretoria Técnico-Científica - TEC