doutora Patrícia Cardoso
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Dores intensas, numerosas complicações que podem afetar quase todos os órgãos e sistemas, com expressiva morbidade, redução da capacidade de trabalho e da expectativa de vida. Este é o quadro se inscrevem aproximadamente 5% da população mundial e mais de 7% das gestantes, portadoras do traço de hemoglobinopatias. No Brasil, apesar de existirem milhares de pessoas convivendo com ela, poucas a conhecem ou dela já ouviram falar.

No Brasil, a anemia falciforme é doença de alta prevalência e importante problema de saúde pública. Estima-se que a prevalência do traço falciforme na população geral fique entre 2 e 8%, e cerca de 60.000 a 100.000 pacientes tenham a doença falciforme, porém, os dados estatísticos ainda estão subnotificados.

Em Minas, a incidência do traço falciforme é de 3,3%, e a da doença falciforme é de, aproximadamente, 1:1.400 recém-nascidos triados, segundo dados do Programa de Triagem Neonatal de Minas Gerais (PTN-MG), que implantou a triagem para hemoglobinopatias em março de 1998 - conhecido como teste do pezinho. O exame é realizado pelo Núcleo de Ações e Pesquisa em Apoio Diagnóstico da Faculdade de Medicina da UFMG – Nupad - e oferecido gratuitamente à população dos 853 municípios de Minas, sob a gestão da Secretaria de Estado de Saúde (SES-MG).

Segundo a presidente da Associação de Pessoas com Doença Falciforme e Talassemia de Belo Horizonte e Região Metropolitana (Dreminas), Maria Zenó Soares da Silva, em 2019 já ocorreram 12 óbitos no estado, em virtude da doença. Ela considera que os pacientes são bem atendidos na Hemominas, recebem as orientações necessárias, “mas o gargalo está na atenção básica, principalmente na urgência e emergência da rede pública de saúde: os profissionais desconhecem as características da doença e esse despreparo causa muito sofrimento e óbitos. As crises de dor são muito agudas e podem provocar infecções graves, intercorrências cardiopulmonares, AVCs – que podem ocorrer de imediato, complicando as condições dos pacientes; por isso, o atendimento tem de ser imediato e às vezes ele demora muito”.

E mais: “Penso que esses profissionais deveriam respeitar as particularidades da doença, acreditar no relato das pessoas, tratá-las com a dignidade que merecem. As crises muito agudas exigem maior aplicação de opiáceos, como a morfina, senão elas não passam. E muitos médicos, por desconhecimento, administram uma dose menor do que a necessária”.

Por sua vez, a médica hematologista Patrícia Santos Resende Cardoso, referência técnica dos ambulatórios da Fundação Hemominas, explica que “a variabilidade dos genótipos da doença torna o prognóstico difícil e, algumas vezes, não há como prever o curso ou evolução da doença. A incidência de complicações é elevada porque, além dos aspectos biológicos próprios da doença, ela ainda é pouco difundida em nosso meio ("a escassa visibilidade"), sua difusão até nos meios acadêmicos é pequena e há necessidade de padronização de atendimento e protocolos bem estabelecidos em todos os âmbitos da atenção à saúde do paciente com doença falciforme”.

Atenção Falciforme na Hemominas

Tudo começa com o teste do pezinho nas Unidades Básicas de Saúde (UBS). O sangue do bebê vai para o Nupad, onde o exame mostra se o bebê possui alguma alteração que possa indicar o diagnóstico de uma doença de origem genética grave ou que se desenvolveu no período fetal (congênita). Se o exame der alterado, o Nupad aciona a família, que agenda uma primeira consulta nas unidades da Hemominas - a referência do SUS no tratamento das hemoglobinopatias, das quais a Doença Falciforme é a mais frequente.

Atualmente, a Fundação acompanha mais de 7 mil pacientes com doença falciforme; cerca de 150 crianças nascem com ela em Minas, por ano, diagnosticadas pelo teste de triagem neonatal e atendidas pelas unidades que acompanham essas crianças: Belo Horizonte, Juiz de Fora, Montes Claros, Governador Valadares, Uberaba, Uberlândia, Divinópolis, Manhuaçu, Sete Lagoas, Diamantina e Patos de Minas.

De acordo com a doutora Patrícia, o atendimento é ambulatorial e o tratamento é individualizado, feito por clínicos, hematologistas e uma equipe interdisciplinar composta por infectologista, ortopedista, neurologista, fisioterapeuta, assistente social, psicólogo, enfermeiro, dentista, farmacêutico e pedagogo, realizando os protocolos e programas da Fundação e Ministério da Saúde. Cada um em sua área desenvolve atividades que contribuem para melhorar a qualidade de vida dos pacientes. O acompanhamento clínico de rotina e realização de exames e avaliações de especialidades, tais como neurologia, oftalmologia, otorrinolaringologia, cardiologia, cirurgia pediátrica e ginecologia são encaminhados à rede municipal de saúde. Em caso de necessidade de atenção médica de urgência e emergência, os pacientes devem procurar a rede pública de saúde, como Unidades de Pronto Atendimento e hospitais.

O cuidado com o paciente falciforme estende-se às mães ou responsáveis, preocupados com dificuldades de aprendizagem e problemas de disciplina e que procuram o atendimento pedagógico para orientação. A primeira providência é saber se os pais já levaram informativos para a escola, orientando sobre as doenças e os cuidados que devem ser observados pelos profissionais de educação. Se não, o setor de pedagogia encaminha à direção da escola e aos professores cartas e a cartilha “Conhecer e compreender para educar”.

Há escolas que solicitam orientação sobre a doença quanto aos pacientes do ambulatório. Cada doença tem uma carta específica (coagulopatias, hemoglobinopatias), de acordo com suas características. Também são realizadas palestras em escolas, onde os profissionais da educação podem conhecer e tirar dúvidas sobre a doença, conhecer os aspectos clínicos, as implicações dos sintomas na vida cotidiana e a relação com o contexto escolar. Há outros tipos de intervenção como: solicitar o apoio do professor nas dificuldades das crianças, envolvendo até, se necessário, a Secretaria de Educação, o Conselho Tutelar e até instâncias superiores.  O setor orienta também quanto ao direito do paciente a transporte escolar e os procedimentos para consegui-lo; sobre mudança de escola para matricular o aluno numa unidade mais próxima de sua residência.

Um outro instrumento do qual a Fundação se vale para esclarecer os pacientes é a série de vídeos “Autocuidado em doença falciforme”. Desenvolvido pela psicóloga clínica da Hemominas, Alice Oliver Rosa Sacramento, e pela estagiária de psicologia, Maria Aparecida dos Santos, ela nasceu da observação das dificuldades dos pacientes com hemoglobinopatias de compreender o diagnóstico, assim como incorporar e manter práticas e hábitos saudáveis de autocuidado, como a ingestão de água e alimentação saudável, que podem prevenir complicações clínicas da doença.

Características

As hemácias das pessoas com doença falciforme apresentam formato semelhante a uma meia-lua ou a uma foice. Fonte: Site biologianet.com
As hemácias das pessoas com doença falciforme apresentam formato semelhante a uma meia-lua ou a uma foice. Fonte: Site biologianet.com

A Doença Falciforme (DF) é genética e hereditária, caracterizada por uma alteração nos glóbulos vermelhos do sangue (hemácias). Na pessoa com DF, em período de crise, a hemácia modifica o seu formato: de arredondada para o formato de foice, o que acaba dificultando a circulação de oxigênio nos tecidos. Os principais sinais da doença são dores crônicas, infecções e icterícia, e ocorrem já no primeiro ano de vida.

As pessoas com anemia falciforme têm sintomas muito variados. Algumas podem praticamente não apresentar sintoma, demandando pouca ou nenhuma transfusão de sangue e, portanto, com boa qualidade de vida. Mas existem pessoas que, mesmo com acompanhamento médico adequado, têm crises muito graves da doença, com sintomas de dores ósseas, na barriga, infecções de repetição às vezes muito graves, podendo levar à morte. Alguns doentes podem ter crises de anemia mais intensas e mais rápidas, necessitando de várias transfusões de sangue com urgência. As crises variam de gravidade e de tipo conforme a idade da pessoa. Os bebês têm mais infecções e dores com inchaço nas mãos e nos pés. Nas crianças maiores, as dores se localizam mais nas pernas, braços e barriga. Alguns doentes podem ter até mesmo derrames cerebrais, com lesões graves e definitivas.

No dia a dia, as crianças com anemia falciforme são diagnosticadas com palidez e muitas vezes apresentam o branco dos olhos amarelado, como na hepatite, a chamada icterícia. Nos adultos, as crises mais frequentes também são de dores nos ossos e complicações devidas a danos ocorridos ao longo da vida, aos órgãos mais importantes, tais como o fígado, pulmões, coração e os rins. Na idade adulta também é comum o aparecimento de feridas nas pernas, que são machucados graves de difícil cicatrização.

É crucial que o tratamento seja iniciado o mais cedo possível - identificada precocemente na triagem neonatal, no teste do pezinho, na Atenção Básica, o exame de eletroforese de hemoglobina que identifica a doença, também é preconizado para todas as gestantes pela Rede Cegonha, e na triagem de doadores de sangue. Como informa a doutora Patrícia Cardoso: “O diagnóstico precoce por meio da triagem neonatal, a prevenção e o tratamento das complicações têm aumentado a expectativa de vida dos afetados”.

Entretanto, a partir do 4º mês de vida, qualquer pessoa pode ter acesso ao exame. Toda a medicação necessária para minimizar as complicações da doença e melhorar a qualidade de vida dessas pessoas é oferecida pelo Sistema Único de Saúde – SUS - (ácido fólico, analgésicos, anti-inflamatórios e antibióticos). O Ministério da Saúde disponibiliza a penicilina oral, medicamento usado para evitar possíveis infecções oportunistas e que deve ser tomado todos os dias, até os cinco anos de vida. O exame preventivo de Dopller Transcraniano, que identifica o risco de AVC em pessoas com DF, de dois a 17 anos, também é ofertado na rede pública. Quando identificadas e tratadas precocemente, aumenta-se a chance de sobrevida normal, de integração social e de preservação da capacidade cognitiva e da qualidade da vida dos pacientes.

Perspectivas

Nos últimos anos, o número de óbitos em Minas Gerais em jovens com diagnóstico de doença falciforme se elevou de forma acentuada, conforme dados apresentados pela Dreminas. As principais causas se deveram à sepse, síndrome torácica aguda, sequestro esplênico agudo em crianças pequenas e outras complicações relacionadas à anemia grave e vaso-oclusão nos órgãos durante eventos agudos. Levando em considerações esse quadro, a Fundação Hemominas, Dreminas e Secretaria de Estado de Saúde formaram um grupo de trabalho no sentido de qualificar e estruturar melhor o atendimento de urgência e emergência, bem como a regulação de casos que necessitem de eventuais internações em toda rede hospitalar do estado.

Nesse sentido, estão sendo implementadas medidas para tentar melhorar o fluxo de assistência integral ao paciente com doença falciforme, tanto nas unidades básicas de saúde como nas urgências e emergências, prevendo-se o treinamento e capacitação dos profissionais de saúde para reconhecer os sinais de alerta do paciente. Dessa forma, pretende-se que o paciente seja prontamente e bem atendido, reconhecido e valorizado em suas queixas, pois, muitas vezes, a crise vaso-oclusiva ou crise álgica é o primeiro sintoma, e se não tratado de imediato, poderá levar o óbito em horas, devido às disfunções orgânicas agudas. Também um curso de videoaulas sobre o assunto, em parceria com o Nupad, está sendo providenciado.

As medidas preventivas de saúde associado ao acompanhamento do paciente nas unidades básicas de saúde são fundamentais para evitar muitas complicações relacionadas à doença falciforme. Devido à elevada frequência de infecções e sepse fatal em crianças com doença falciforme, é feito uso de antibiótico profilático até os 5 anos de idade, uso de ácido fólico, vacinações. Mas é fundamental que os pacientes estejam inseridos e acompanhados nas unidades básicas de saúde de seus municípios, inseridos em programas específicos da UBS, planejamento familiar adequado, controle clínico, odontológico regular, encaminhamentos específicos para outros especialistas e exames, conforme preconizado pelo protocolo de assistência ao paciente com doença falciforme disponibilizado on line. Em caso de suspeita de algum evento agudo, encaminhar para hospital com vaga zero, para evitar atraso no tratamento e piora do prognóstico.

A Fundação Hemominas atende pacientes/familiares e profissionais de saúde com informações sobre a doença por meio do LigMinas 155 – Atenção Falciforme. As ligações são direcionadas ao médico de plantão que é responsável por orientar os pacientes de acordo com os sintomas apresentados. Atenção Falciforme é um serviço essencial para ajudar aos pacientes com a doença.

Depoimentos

 

André Felipe F. Souza – 12 anos, acompanhado da mãe, Núbia Raquel Silva: A doença foi descoberta com 15 dias de nascido e desde então faz acompanhamento na Hemominas, aonde vem de 6 em 6 meses. Após a retirada da vesícula, sua qualidade de vida melhorou muito: “Antes, era hospital todos os dias, lembra”. Alteração nos exames do fígado exigiram tratamento e consultas mensais no Hospital das Clínicas. Na sétima série do ensino fundamental, embora as limitações, ele joga bola, “de leve”, peteca, tem uma alimentação normal, saudável “e tomo os remédios direitinho”, diz.

 

Maria Eduarda, nove anos: uma das três meninas da família com anemia falciforme, “ela sempre fica com os olhos amarelados”, comenta Josiane Fernandes Queiroz, a irmã que a acompanha. Vai à escola, mas na terceira série, ainda mostra dificuldades com a leitura. Gosta de brincar e “tenho que comer muita verdura e legume”, diz.

 

 

Emily, com a mãe Baana, e Wanderson, com a mãe Nildete: aprendendo a conviver com a doença – Fotos: Adair Gomez
Emily, com a mãe Baana, e Wanderson, com a mãe Nildete: aprendendo a conviver com a doença – Fotos: Adair Gomez

Emily Oliveira Sousa, 12 anos: portadora de Beta Talassemia, ela tem crises frequentes de dores no corpo, que exigem remédios muito fortes, e sabe de cor o nome de todos eles. Segundo a mãe, Baana Brígida de Oliveira, que possui o traço falciforme, ela praticamente tem crises todas as semanas e a preocupação é constante: “A gente nunca sabe quando será a próxima”. Emily teve infarto ósseo da coluna (ficou internada por cinco meses), macroaneurisma dos olhos – há pouco tempo se submeteu a uma cirurgia devido ao descolamento da retina, apresenta desgaste na cabeça do fêmur. Ocorrências que praticamente a impedem de frequentar a escola normalmente, onde só vai para fazer as provas. Na sétima série, estuda em casa e para se distrair, vale-se do celular, anda de bicicleta, hoverboard (tipo de skate elétrico). Quanto aos projetos, pensa ser médica, mas foi convidada para ser modelo. Gosta de viajar – principalmente para o Rio de Janeiro. A alimentação é restrita: não pode comer ovo e nada que contenha ferro ou nasça embaixo da terra e que precise ser cozido. Cenoura, por exemplo, só crua. Mas pode comer arroz, feijão – chocolate e doce, só uma vez por semana. Indagada sobre o que mais a incomoda na doença ela responde: “já me acostumei com tudo”.

Wanderson Ferreira da Silva, 16 nos, portador de anemia falciforme. A mãe, Nildete da Silva, conta que moram nos arredores do distrito de Vargem Grande, no município de Braúnas, Vale do Rio Doce e sobrevivem com a Bolsa Família. O tratamento do filho é feito no Hemocentro de Governador Valadares, ao qual ele comparece todo mês para fazer transfusão de sangue – a prefeitura se encarrega da condução. Evitar exercício pesado, esporte, alimentação saudável, fazem parte da rotina. O lazer é garantido pelo celular, saída com amigos. Também vai à igreja e namora.

 

Gestor responsável: Assessoria de Comunicação Social

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